Friday 12 February 2010

2010: o ano da digitalização do livro

A Apple lançou o iPad, um aparelho que é leitor de e-books, mistura de computador portátil e "smartphone" e vai competir directamente com o Kindle da Amazon. Porque é que eu estou a falar de tecnologia neste blog sobre livros? Porque o "tipping point", ou o ponto de não retorno ou de viragem se quisermos, de como as pessoas vão ler livros já foi ultrapassado.
Os livros electrónicos e os aparelhos para os ler já existem há algum tempo, mas estão agora a generalizar-se com uma rapidez estonteante e nada vai alterar o curso desta mudança profunda a caminho da digitalização.
A própria definição do livro como objecto, como conceito e entidade está em causa. A sua integridade, se quisermos está a ser atacada. Mas não pensem, meus queridos leitores que me vou juntar aqueles que lamuriam o fim dos livros e das bibliotecas. Aqueles que falam do cheiro das páginas, da relação íntima com o livro físico, dos que colecionam obessessivamente e os que compram livros por "terem pena de os deixar maltratados na loja" como li no outro dia, num artigo sobre bibliófilos. Jorge Luis Borges escreveu que o paraíso é uma biblioteca e quem gosta de livros identifica-se com essa comparação.
Há vários anos que iniciei a difícil, mas libertadora tarefa de doar livros a bibliotecas, amigos, sotãos variados, garagens, lojas em segunda mão e caridade. Bibliófilos estremeceriam a pensar nesses livros encaixotados, a sofrer com a humidade e o escuro, as suas páginas eruditas cerradas, a amarelecerem, as suas palavras paralisadas por este triste destino.
A verdade é que apesar de também achar as bibiotecas e livrarias locais de refúgio, de encontro com novos temas, novos autores, novas ideias, há livros para guardar e para admirar e há livros para ler e deitar fora, de preferência para serem lidos por outros ou alguns para serem destruídos, reciclados e transformados em coisas mais úteis. Que heresia, ouço já bradar os que mitificam e tratam os livros como algo de sublime. Sejamos honestos, por terem a forma de "livro", nem todas as publicações merecem este grau de embasbacamento e idolatração. Não estamos a falar de edições antigas, nem de obras culturais de envergadura, que naturalmente devem ser preservadas em museus-bibliotecas. Não seria melhor para o ambiente, por razões de espaço, de conveniência que certos livros pudessem ser descarregados electronicamente e lidos em qualquer lado, transportados com facilidade numa viagem, por exemplo?
Há anos, andei a carregar uma mala pesadissima na América latina com livros para me durarem 15 dias, que ia deixando em aeroportos. Recordo-me de ter acabado de ler um livro sobre uma lésbica judia ortodoxa em Londres que em deixou insatisfeita por ter um final mal resolvido. Não só me irritou o facto de o livro insistir em transportar-me de volta para Londres, quando eu estava num aeropoto no México (adoro ler livros passados nos locais que visito) como a autora não pensou nas consequências de não acabar de uma forma que fazia sentido, pelo que logo o abandonei, as suas 300 páginas e capa dura e pesada numa cadeira, talvez para serem lidos e irritarem outra pessoa? Há livros muito mauzinhos.
Ao contrário dos CDs de música que não instigam qualquer espécie de enamoramento, os livros sempre inspiraram este misto de respeito, afeição, quando não de pura obssessão. Ninguém vai queimar os livros na grande fogueira da digitalização. O livro não vai desaparecer, porque os seres humanos são tácteis e os computadores não se podem levar para a cama e para o banho tão facilmente e não são objectos tão bonitos. Contudo, este ano a viragem está a ocorrer. O livro digitalizou-se.