Friday 14 December 2007

O Natal em Londres



Eça de Queiroz, que como diz a minha avó é uma referência fundamental onde se encontram pensamentos, divagações e lições sobre todos os temas (ou quase todos) e que pode ser consultado como uma enciclopédia da contemporaneidade, escreve nas Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres sobre o Natal.
“O Natal, a grande festa doméstica da Inglaterra, foi este ano triste (...) o que nos estragou o Natal, não foram decerto as preocpaçãoes políticas (...) as desgraças públicas nunca impedem que os cidadãos jantem com apetite e misérias da pátria, enquanto não são tangíveis e se não apresentam sob a forma flamejante de obuses rebentando numa cidade sitiada, não tirarão jamais o sono ao patriota.
Não, o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. (...) um natal sem neve, um Natal sem casacos de peles, parece tão insípido e tão desconsolado como seria em Portugal a noite de S. João, noite de fogueiras e descantes, se houvesse no chão três palmos de neve e caísse por cima o granizo até de madrugada! Um desapontamento nacional”.
A obsessão britânia com o “White Christmas” tem no entanto diminuido nos últimos anos, talvez devido à inconturnável realidade do malfadado aquecimento global. Hoje de manhã, por exemplo, havia geada nas ruas, partículas brilhantes e folhas geladas como se tivessem sido polvilhadas com acuçar cristalizado. A relva do jardim estava coberta com uma fina camada branca, mas não há sinais de neve.
Na televisão já não se ouve falar tanto na possibilidade de neve no Natal, mas sim das flores que, confusas com as alterações climatéricas, decidem florescer meses antes da Primavera, dos pássaros que não sabem a quantas andam e cujas trajectórias migratórias foram modificadas por temperaturas mais amenas no norte da Europa.
Assim como a questão fascinante de qual disco será "número 1" no top na altura do Natal, fazem-se apostas se haverá ou não neve a completar o quadro nostálgico da época natalícia (que oscila entre o estilo rústico vitoriano por um lado e os anos 50 do género Bing Crosby por outro).
Mas há outro Natal que espantaria o Eça: o Natal “kitsch” das festas de escritório, das senhoras de sandálias com menos 2 graus centígrados, dos tontos que andam vestidos de pais natais ou de alces ou elfos ou com decorações a enfeitar a roupa, brincos em forma de árvore de natal, camisolas de lã com bonecos de neve, das casas cobertas de luzes por fora, das canções dos anos 80.

Voltando ao Eça (e volta-se sempre ao Eça) esta pequena crónica do Natal começa muito bem a descrever a falta de neve e a magia e encanto da festa cristã: "e por corredores e salas, as crianças, os bébés, com os cabelso ao vento, vestidos de branco e cor-de-rosa, correm, cantam, riem, vão a cada momento espreitar os ponteiros do relógio monumental, porque à meia noite chega Santo Claus, o venerável Santo Claus que tem três mil anos de idade e um coração de pomba (...). Mas não se iludam os que pensam que o Natal subiu à cabeça do Eça e o romantismo lhe turvou a mente lúcida. A verdade é que esta crónica cedo descamba para o cinismo, a crítica social e o desprezo e desilusão causada pela condição humana. Depois de falar das criancinhas e do "Papá Natal", o "respeitável ancião", o escritor lembra que a ausência da neve tem um ponto positivo: "resta a consolação que os pobres tiveram menos frio". E daí não há como estancar a tinta na pena cáustica do Eça que logo nos descreve o lado miserável da Inglaterra no fim do século XIX, das crainças com fome e da caridade sazonal, dos trabalhadores famintos na Irlanda revoltosa:"Donde se prova que esta humanidade é o maior erro que Deus jamais cometeu (...) de facto, pode-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu venerável pai, o macaco: excepto em duas coisas temerosas-o sofrimento moral e o sofrimento social."

Ora eu acredito que o Eça tenha iniciado a crónica com boa vontade, mas o instinto crítico e a consciência foram mais fortes que os lugares-comuns sobre a nevezina, os bébés de cor-de-rosa e o Santo Claus.


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