Saturday 1 March 2008

Aldrabice na cozinha ou ir contra o "zeitgeist"


Como Cozer um Ovo

Delia Smith, que é uma instituição da culinária britânica lançou recentemente um novo livro: "How to Cheat At Cooking". Delia é famosa desde os anos 70, por ter sido a pioneira dos cozinheiros que simplificam a arte sagrada da culinária e ensinam "truques" para impressionar convidados em jantares com um mínino de esforço. "To do a Delia" é uma expressão que significa isso mesmo e que entrou no vocabulário idiomático inglês.

Esta senhora iniciou a sua carreira com colunas em jornais, passando depois para a televisão e para a publicação de livros e patrocínio de ingredientes, tendo ganho uma verdadeira fortuna e alcançado a fama. Ultimamente Delia desapareceu de algum modo, abrindo as portas para Jamie Oliver, Nigella Lawson, Rick Stein, Gordon Ramsay e outros.

Na última década, a culinária deixou de ser um "niche" e passou a ser levada extemamente a sério, tendo gerado um interesse no público comparável à obsessão britânica com propriedades, venda e decoração de casas, competindo por espaço em programas de televisão e "reality shows". Assim, a um programa sobre um casal à procura da sua "casa de sonho", segue-se um programa em que cozinheiros amadadores tentam convencer um júri de "gourmets" ou um "celebrity chef" de que são a pessoa certa para um lugar num restaurante de alto luxo.

No seu apogeu, Delia Smith ensinou a cozinhar ou a "enganar na cozinha" a gerações de jovens estudantes e pessoas sem talento e sem tempo com o seu estilo prático e desmistificador, tendo ficado célebre com um capítulo em como "cozer um ovo".

O panorama mudou drasticamente. Hoje em dia, a tendência da classe média é para passar horas em mercados reais ou virtuais à procura de produtos alimentares, o chamado "sourcing". A proveniência dos alimentos é crucial, daí a moda despoletada por cozinheiros "in" como Jamie Oliver de cultivar hortas, ou pelo menos de ter ervas aromáticas em vasos. Além disso é imprescindível tornar-se amigo íntimo do talhante, do homem da peixaria e da mercearia para assegurar que os alimentos são biológicos, que no caso da carne e do peixe, que os animais foram bem tratados e a proveniência é sustentável e não causa extinção de espécies, ou aquecimento do planeta por terem sido importados dos antípodas.

Este tipo de consumidor "gourmet" quer ter a certeza de que os ingredientes são locais e não contêm poluentes, químicos, aditivos estranhos e que têm "valor nutritivo". Os vegetais são do jardim, do mercado local ou das imediações sendo trazidos numa caixa semanal cobertos de terra e com o ar feioso, mas saudável da agricultura biológica. Com estes produtos, o adepto de Jamie Oliver vai elaborar pratos complicados, em que tudo é confeccionado pelo próprio dentro do possível. Por exemplo, a massa deve ser feita em casa, assim como o pão, os bolos, os molhos que acompanham ou fazem parte de uma receita.


Porno-Culinária

O último programa de Nigella Lawson, o "Nigela Express" ensinava como peparar sumptuosas refeições que impressionam, embora sejam ultra-rápidas. Na realidade, envolviam sempre imenso trabalho, não que a voz e as formas sensuais da decotada Nigella a lamber os dedos e a cozinhar bombas calóricas o deixassem antever. Nigella é pornografia gastronómica e em sintonia com a sobre-sexualização da sociedade actual (se não existe este termo deixem-me inventá-lo que eu estudei sociologia).

E eis que surge de novo Delia com receitas que usam uma série de ingredientes congelados, enlatados, empacotados e pulverizados que supostamente nos facilitam a vida, com o seu ar despachado e até um pouco severo de presidente de clube de futebol. Desde a sua abdicação da coroa da Rainha da cozinha britânica, tem gerido o seu adorado Clube de Futebol de Norwich.

Será que existe lugar para a Delia na culinária actual? A "marca" em si, dada a sua fama está suficientemente estabelecida e o livro está já no top da lista de "bestsellers".

Segundo esta veterana, o que falta nestes extravagantes tempos é uma certa dose (mais do que uma pitada) de realismo. A sofisticação dos "cozinheiros-celebridade" fazem com que as pessoas se sintam diminuídas e incapazes de fazer um prato decente. Poderiamos acrescentar, que como diria Nigel Slater (um dos meus preferidos, juntamente com Rick Stein) há uma grande concorrência entre os "chefs" principalmente masculinos, um machismo da colher de pau, se me é permitido. É tudo muito científico e e elaborado com o objectivo de ganhar prémios, "estrelas michellin" ou para os amadores, elogios da mulher (que depois tem que limpar a cozinha onde o marido usou todos os utensílios, panelas e deixou um rastro de destruição, mas deve sentir-se eternamente grata).

Muitos são os que assistem a horas de porno-culinária sem saber estrelar um ovo, acabando por comer refeições pré-feitas e "takeaways".

Apesar da simpatia pela causa dos frangos de aviário, a moda das hortas, da cozinha molecular com os seus complexos princípios, a influência da gastronomia estrangeira, as fusões culinárias e a sensualidade dos souflés, nunca devemos subestimar o factor preguiça e a dificuldade de fazer uma jantar "super-simples" de "humus com pimentos vermelhos", seguida de uma "tarte de cebolas caramelizadas" e "mini-pavlovas", como aconselha a Nigella.

1 comment:

den fremmede said...

Para pessoas como eu com aversao a cozinha, a Delia e uma santa.

A Nigella e acucar para os olhos. tanto quanto aquele que ela coloca nas suas receitas. Tanto que o proprio marido ja deixou de comer os seus cozinhados. Tornou-se vegetariano e perdeu 10 kilos.

Comer fresco e cozinhado em casa e sem duvida optimo; para quem tem temo, jeito e dedicacao - ou esposos/esposas prendados/prendadas.

Comer da lata ou congelado, por mais estranho que pareca aos pseudo-puritanos da comida (menos estranho para os que conhecem os segredos sujos da agroindustria, sedenta de lucros) pouca diferenca faz com os produtos das linhas superiores dos supermercados mais caros.

Como em assuntos do coracao, o que vale e o recheio e a dedicacao que se aplica ao trabalho.

A minha dedicacao extende-se ate ao cozer de um ovo (e nao por muitos minutos, porque ate prefiro ovos quentes) e que nao seria de nos se a Delia nao nos ensinasse a arte de cozer um ovo?