Wednesday 14 November 2007

Livraria Arcadia



No Inverno de 97 trabalhei numa livraria antiquário, em frente ao Museu britânico. Propriedade de um casal americano aterrorizante que nunca cheguei a conhecer e que geria pessoalmente e com rédea curta esta loja assim como a livraria-mãe (faz lembrar a "Star Death" da Guerra das Estrelas, ou seja a nave-mãe) no coração de Manhattan. O estabelecimento londrino tinha um nome vagamente grego ou latim para evocar erudição e nunca poderia ser confundido com um mero alfarrabista ou livraria em segunda-mão. O edifício datava do século XIX e a livraria ocupava a cave, primeiro e segundo andar, com austeras escadas de madeira que rangiam como num filme de terror. Os livros não estavam agrupados por temas, épocas, autores ou qualquer outro sistema que pudesse facilitar o cliente, mas sim por vendedor a quem tinham sido comprados (os "dealers", que mais uma vez faz lembrar "drug dealers"). Assim as estantes tinham os apelidos destes homens misteriosos e extremamente excêntricos. Cada um deles tinha um portfólio e uma especialidade. Um, por exemplo vendia primeiras edições modernas, outro livros para crianças, outro livros científicos e por ai fora. De vez em quando apareciam na Arcadia (vamos chamar à livraria, Arcadia) com malas ou caixas cheias de livros que tinham que ser inspeccionados e catalogados. Um deles vestia uma garbardina beije e sebenta e tinha o cabelo ralo mas comprido. Havia algo de sórdido e quase desonesto nos "dealers", apesar de serem apenas homens que viviam para comprar e vender livros. Como os coleccionadores ficavam excitados quando tocavam nas páginas de livros raros e esgotados, cuja caça era a sua única razão de existir. Fui contratada num ápice, apesar de não ter experiência nenhuma de livrarias, nem de comércio, nem nunca ter processado uma transacção comercial. Como todos os outros empregados à excepção de uma pessoa, eu tinha as qualificações necessárias para um salário muito abaixo do mínimo nacional e do que ganham as empregadas domésticas em Londres: era ultra-qualificada, ou seja era preciso ter um mestrado, pós-graduação ou mesmo doutoramento. E é imperativo que passe agora à descrição dos meus colegas. O gerente era o Steve (os nomes são fictícios não para proteger a identidade dos participantes, mas porque não me recordo dos nomes verdadeiros de todos eles), um inglês típico de meia idade e aspirações intelectuais com cabelo grisalho sobre o comprido, óculos, camisolas de lã grossa a tapar inedequadamente a barriga protuberante. Era um fraco e um canalha, sem espinha dorsal, sempre a abusar da sua posição de gerente e a dar graxa aos americanos ao telefone que o tratavam como a um cão vadio (e com isto não quero dizer com compaixão e respeito). Na complexa hierarquia desta instituição, havia duas pessoas que eram coronéis do General Steve, um crítico e outro leal: Rachel, uma escosesa da minha idade, com um doutoramento em egiptologia e o intrigante e lacónico russo, Vladimir, o único que não tinha qualificações discerníveis. A Rachel era muito simpática e bonita com o cabelo ruivo e sardas e uma aparência que nada tinha a ver com o seu carácter marcado, personalidade crítica e extrema perspicácia. Cedo, nos tornamos compinchas, contra o Steve, cuja voz pegajosa e exigências absurdas nos irritavam e contra o russo que desconfiávamos ser um "buffo" e espião do Steve.
Estão a seguir a trama?
Pois bem, depois havia o Ben que era um jovem borbulhento de óculos de lentes grossas e aros pretos (género Peter Sellers) e franja estudada, muito magrinho de calças justas e sapatos bicudos, que no contexto do revivalismo dos anos 60 que se atravessava naquela altura era considerado "bem parecido". O problema principal com o Ben era o cabelo oleoso e o ar encardido de quem tinha acabado de vir de um motim nas ruas de Paris em Maio de 68. Mas era um alma poética que coleccionava Tennysons, bem intencionado e divertido, apesar de "não acreditar no sabão". O Ben tinha uma namoradinha inglesinha e moderninha de quem falava todo o tempo e isto é relevante porque havia mais uma personagem na Arcadia que era a Amy, mulher quarentona que desenvolveu por ele uma paixão galopante. A Amy era americana com um doutoramento em literatura, frequentava psiquiatras e parecia saída de um filme da fase séria do Woody Allen. Tinha o cabelo castanho muito comprido e liso, como usavam as senhoras que nos 80 preferiam inspirar-se na "Belle Époque", além de umas blusas de colarinho rendado e calças-saia largas e botins, ou seja mais um anacronismo. A Amy ficava embevecida com as tontices do Ben e imaginava que qualquer dia ele ia deixar a namorada e cair-lhe nos braços. Nós (eu e a Rachel) reviravamos os olhos e tendo 20 e poucos anos como o Ben achavamos que os avanços da Amy eram chocantes e inapropriados, apesar de termos pena dela. O Ben, como ente adorado conseguia ser muito cruel.
Passávamos os dias a arrumar livros. Eu adorava as prateleiras de livros infantis e de culinária do século XIX com ilustrações fantásticas. Limpava o pó cuidadosamente e marcava a lápis o preço (super-inflaccionado). Só havia um computador e a internet estava na idade da pedra. O russo era responsável por encomendas e por responder a e-mails, um trabalho que levava muito a sério.
Tinhamos poucos clientes, afugentados pelo edifício fino, os preços exorbitantes e a fauna de personagens que ali trabalhavam. Havia os coleccionadores, alguns apaixonados pelos livros, outros pela possibilidade de fazer negócio e depois havia o grupo que mais desprezávamos: os turistas, que saiam do museu britânico e faziam a ronda das lojas do bairro.
Quando se aproximava o Natal, o Steve mandou a Rachel decorar a montra, porque eu "não tinha experiência suficiente". O russo concordou que a montra era um trabalho muito difícil e especializado. A Rachel pediu-me ajuda e fizemos uma montra de Natal lindissima inspirada pelo Charles Dickens.
A certa altura eu e a Rachel decidimos queixar-nos dos nossos salários miseráveis. Sabiamos que o russo ganhava muito mais. Pedimos para que nos pagassem os transportes, uma reeinvindicação que foi recusada pelo patronato. Estávamos cada vez mais revoltadas com a injustiça laboral e a gota de água que precipitou a nossa saída foi quando o Steve insisista que nós tinhamos que limpar a cozinha da livraria. Ora, o russo e o Ben não limpavam a cozinha e o Steve morria de medo da Amy. Resolvemos despedir-nos e fomos para o Chez Pierre, um restaurante francês beber vinho branco no frio de Janeiro. Nunca mais nos vimos. Entretanto alguns anos mais tarde a Arcadia fechou. Espero que a Rachel seja uma egiptóloga conceituada, que o Steve esteja a dar graxa a alguém ou esteja reformado, que o russo esteja menos carrancudo, que o Ben escreva poesia, que a Amy tenha encontrado um "dandy" tipo "Moulin Rouge" que a aprecie.

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